18 de novembro de 2010

Toalha de mesa na grama

Desde que a professora da segunda série começou a ensinar o desenho abstrato, eu nunca mais larguei a canetinha. Quando ela engata numa superfície menos aderente do papel, consigo vislumbrar os cruzamentos. Quero terminar pra colorir logo. Nostalgia não tem motivo algum e só faz sentir uma pressão no umbigo. Acho que não sei mais reagir ao encontro e a perda.

Decidi sair da margem do papel. Cansei de passar em cima de linha e mais linha de alguém que eu não conheço mais. Agora eu to pintando a mesa que é pra ver se me acho longe desse emaranhado. E aí talvez eu me perca de verdade, por não saber os limites desse novo lugar. Pois se perder fingindo não serve nem mais pro papel de atriz furreca que eu faço.

O tempo não passa pra essa tentativa de obra de arte. Eu me dei conta que eu sou aquela aluna que sempre trava a caneta pra mostrar o que já fez. Bem feito que depois quase desequilibra de exuberância. Só que das primeiras vezes que fiz isso, umas meninas riram de mim e gostei da ideia de ser palhaça. Palhaça e malabarista, que enquanto não largava o traçar dava pra jogar fandangos pra cima e encaçapar com a própria boca. Quando caia no chão e eu comia sem nojinho então, a plateia largava a gargalhada.

Pobre de mim que fui fazendo amigos querendo fãs. Aquelas meninas da aula de arte começaram a me desafiar num picadeiro de piadas. Me ensinaram a fazer tipo, a falar tipo, a falar gíria, gíria idosa de sacanagem, sacanagem de quem não entende graça. Quando notei que elas eram melhores, quis imitar. Quando tentei imitar, me deu agonia infeliz de palhaço. Fiquei sem saber quem era eu, quem era ela, quem era o palhaço. Elas ainda zuaram da minha desgraça.

Foi mais um momento de instantes longos da minha vida. Meu olhar levantando vagarosamente do meu estado em cabisbaixo. A estranheza, a humilhação, a dor, o ódio, a vingança eram lances da escada da minha visão. Que deve ter alcançado o par de olhos verdes mais encantadores que já vi. A boquinha fechada numa conformação pateta, que não tem como não esquecer os pesares do mundo. É que elas acham graça de tudo mesmo. O tapinha nas costas de aconchego é como o de uma giganta sem dedos.

Nossa trupe foi desenrolando charme por aí. Tem um jogo de dados das faces de humor. Umas vezes nós brincamos de Uma na roda sem entender o que as outra dizem. Outras de repetição incansável de anedotas ruins. E mais ainda de rir da Louise, que é o nosso ventríloco típico, desses com a boca bem grande. Trabalhar nisso era bom e eu fui ficando. A gente foi trocando de escola de comédia; refinando e embabacando o show. Eu me dei conta de que falava em plural e repetia gerúndio sem condenar a rotina na qual me meti.

Nem me sinto muito animada com os nossos concorrentes. Mas quando dá vontade de mudar de vida, eu sento na plateia sem elas perceberem. Sinto de novo a alegria crua de ser criança. Meu corpo reage que nem boneco de dar corda: balança perna sem parar. É a espera do próximo número. Comento com o resto dos pagantes a qualidade, eles se emocionam com as minhas palavras de orgulho e com a eloquência da minha fala. Elas descobriram esse meu talento e me puseram de cara-de-pau. Que sou a única palhaça sem-vergonha.

Mas eu só faço porque tem vezes que uma delas me percebe sentada vendo o show e tira do bolso seu próprio desenho daquela aula de artes. Trigonométrico, corte e colagem, moldura de revista de fofoca ou faces de linhas freudianas. Eu me vejo em todos os traços e aposto que tem muito delas nos meus.

São reflexos de uma estada colorida na Terra, dum espetáculo barulhento e lindo. É como um piquenique forjado só pra comemorar a amizade. O encantamento ta na toalha que nós estendemos. Se uma solta, a outra pega, não deixa cair. E olha só como ela num é um artesanato de linhas encontradas.