16 de maio de 2009

Conto n°2

07/10/2008


A primeira vez que a viu foi em março de noventa e seis. Ele tinha seis anos e noventa centímetros, faltavam apenas dez pra andar na mini-montanha russa do parque. Ela passou sem percebê-lo. Exibia um arco com dois laços vermelhos, o uniforme do colégio das freiras e deixou cair um nariz de palhaço. Ele recolheu.

Ela o percebeu apenas em setembro do outro ano. Já tinha sete anos e viu um menino que segurava aquelas bolas de clóvis. Ela adorava carnaval, mas tinha medo daquela fantasia. Olhou pra ele e viu também um curativo no queixo. Teve pena, não medo.

No dia seguinte eles pararam um de fronte ao outro, nas calçadas opostas de sempre. Mas se viram desta vez. Ele sorriu e ela olhou pra baixo. Ele seria um clóvis da vida real? Seria muito mal? Era um extranho de qualquer jeito e ela não podia falar com estranhos.

Ele não entendeu porque ela abaixou a cabeça. Devia ser mais uma das garotas que estavam se afastando dos meninos. E ele a odiou terrivelmente. Não voltou a sorrir pra ela na travessia para o outro lado da rua, apenas focalizava o bonequinho verde que o permitia atravessar.

Infelizmente se viam todo dia. A mãe dele preferia atravessar naquele sinal. “É logo em frente ao seu colégio” dizia ela. A empregada dela tinha que comprar pão todo dia de manhã e a padaria do outro lado da rua fazia um pão bem cheiroso e era no caminho. Às vezes ele a pegava olhando-o, mas ela fazia questão de abaixar os olhos em seguida.

Três anos se passaram e um dia ela não o viu. Parou, o sinal ainda estava vermelho, e não havia ninguém do outro lado da rua. Quer dizer, havia um monte de gente, mas não o seu clóvis de sempre. Pensou mil coisas horríveis, dessas que as crianças pensam como se realmente acontecessem.

Dois meses depois do início das aulas ele não teve como fugir daquele sinal. Na rua por onde estava indo pra escola todos os dias, houvera um acidente e os guardas impediam a passagem de pedestres. Ele a viu. Antes de parar no sinal. E correu pra se esconder na pilastra da padaria.

Ela vinha com um garoto. Do mesmo colégio que ela. A mãe devia ter permitido-a ir sozinha pra escola neste ano, todas as crianças estavam indo. Ela estava linda Ele não pode deixar de perceber como seus cabelos ondulados caiam no ombro presos por dois grampos, um de cada lado, e pela primeira vez seus olhos pararam nas pernas de uma garota.

Caio, o vizinho dela, estava com uma crise de asma na segunda semana de maio. “Pobrezinho” pensou, “justo dois dias antes de seu aniversário”. Ela resolveu fazer algo que sempre tivera vontade de fazer. Seguir pela outra rua e atravessar em um sinal mais à frente. Seria mais longo, mas sempre estava com Caio desde que começou a andar sozinha e ele dizia que seus pais não iriam gostar se eles mudassem o percurso.

Ela adorava àquela rua. Tinha muitas árvores, muitas casas antigas... Tinha ele. Vindo em sua direção. O menino que desde o início do ano nunca mais vira. Ele estava mais alto e mais desengonçado. Seu colégio provavelmente mudara de uniforme, visto que os shortinhos de lycra azul foram substituídos por uma bermuda jeans.

Passou um vento, destes que te deixam zonza. E as folhas do fichário dela voaram todas. Ela se abaixou urgentemente para tentar pegar as que não tinham caído no rio que cortava a rua. As duas últimas foram catadas por ele.

- Obrigada – ela olhava pra baixo. Não conseguia não reparar como as mãos dele eram bonitas.

- Não tem de quê.

Ela não era uma das meninas que tinha se separado dos meninos aos sete anos. Era tímida! Escondia um sorriso no canto direito da boca exatamente no momento em que agradeceu a ele.

- Qual se nome?

Ela estava de costas pensando se respondia ou não. Se era corajosa o suficiente para mudar o caminho de sempre, não teria medo de estranhos dessa vez.

- Nina.

- O meu é Pedro. É que o meu vizinho estuda no seu colégio... Eu to atrasado. Eu tenho que ir.

Ela o adorou por ser tão corajoso! E foi pra escola escondendo o sorriso no fichário que apertava junto ao peito. Esquecera toda a matéria que tinha que recuperar e em casa só pensava em ir pra escola no dia seguinte pela rua em que tinha descoberto o menino.

Ele pensou nas pernas dela. O dia inteiro também. E seguiu com as suas para o vosso antigo sinal, pensando que ela estaria lá. O mal dos dois era pensar de mais. Ou de menos, visto que seus impulsos falavam mais alto mesmo aos onze anos.

Tornaram-se amigos. No dia seguinte ao desencontro Caio deu um beijo em Nina quando ela chegou ao seu apartamento para contar tudo. E cedeu aos sentimentos do garoto. Estavam namorando desde então.

Pedro era o garoto de quinze mais esperto que ela conhecia. Vivia por contar histórias obscenas que ouvia de seus vizinhos. E ao lado dele Nina era a mais corajosa das garotas. Se interessava nos mínimos detalhes das histórias.

Nina era a garota de quinze mais original ele conhecia. Juntos mudavam o final de todas as histórias e ele tinha que admitir que os finais dela eram bem mais surpreendentes e emocionantes que os dele.

Pra ele, ela era feito uma montanha russa. Daquelas que ele tanto gostava. Pra ela, ele ainda era clóvis. A fantasia mais misteriosa e mais altiva do carnaval. Pra eles ainda eram juntos um sinal vermelho que os obrigava a se observarem por minutos que pareciam uma eternidade, sem ao menos se tocarem.

No final do ano Pedro foi morar nos Estados Unidos. E as conversas dos dois se resumiam a cartas. As de Nina bem grandes e espaçadas. Sua pontuação coincidia perfeitamente com o jeito que falava. Devia saber fazer isso muito bem porque queria escrever contos infantis, como confessara a Pedro um ano atrás.

“Terminei”. Foi a carta de dezembro do ano sete. Soube que Pedro entenderia. Ou talvez pensasse em muitos sentidos para aquele verbo, mas apenas um haveria de deixar seu coração mais aflito do que nunca. Só um o faria voltar ao sinal de sempre.

Durante dois anos ela atravessou àquela mesma rua. Tinha dias que chegava da faculdade bem de noitinha e sentava no meio fio. Examinando a poesia que saia daquele bonequinho que ora era verde, ora era vermelho. E as duas opções de destino que ele lhe oferecia.

Passados mais um ano sua esperança foi-se esvaindo. Não poderia jamais ter tanto amor por outra pessoa. Pedro era um clóvis muito mal que à deixara sozinha. Vã. Atravessando a mesma rua. Fora feita de palhaça.

Não. Era ele o palhaço. No dia primeiro de setembro ela estava com pressa e resolveu seguir correndo para o sinal adiante. Ele a puxou. Usava uma bolota vermelha no nariz, muito parecida com uma que ela tinha quando era pequena.

Sinal verde.




Severa Maria

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